sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Do alto do monte - Conto de Natal

... Pacheco deixa arrastar a âncora, perde o norte e encalha. Com a água pelo pescoço, agita-se freneticamente, mas não pede ajuda. Da sua boca, houve-se, disparadas, as palavras: «....Sócrates maldito... Corrupt… Soc.... glu.... glu.... gl....». Depois, silêncio. Do alto do monte, o velho assiste à cena e abana a cabeça. Um pensamento, todavia, absorve-o... nunca mais acabam com a publicidade no canal público… «Comenda!!!», berra, olhando ligeiramente por cima do ombro. O fiel amigo, ouvindo a voz do dono, aproxima-se correndo nas quatro patas e agitando a cauda num frenesim. O velho pousa a mão direita sobre a cabeça do cão e faz-lhe distraidamente uma festa. «Comenda...» diz novamente... … agora que a golden share vai à vida, o Belmiro pode outra vez tentar vender aquilo aos bocados e fazer uma pipa de massa,» e conclui com tristeza... «O país afunda-se». O rafeiro desanimado volta a deitar-se em cima do jornal. O velho cogita. A vida passou depressa. Como num filme agitado, imagens apressadas percorrem-lhe o pensamento. Olha novamente para o sítio onde desaparecera Pacheco. Nunca gostara muito dele. A situação piorara depois daquela insistência obsessiva com que alimentara os ódios dela e a conduziu àquela derrota estrondosa. Olhou demoradamente para o mastro que boiava no sítio do naufrágio. Julgou ver um objecto que emergia. Semicerrou os olhos, concentrando-se na imagem. Pareceu-lhe ver um dedo espetado, depois um punho e, finalmente, o corpo de Pacheco emerge de rompante à superfície separando as águas com estrondo. O mar devolvia Pacheco à vida. Os pulmões de Pacheco congestionados recusam-se a aceitar o sopro da vida. Pacheco estrebucha e consegue, num ronco cavo, começar a respirar. Os olhos arregalados percorrem a costa em redor, ávidos de vida. De repente, Pacheco avista o velho no alto do monte, e, na sua agitação, confunde-o com Deus. Não era Deus, longe disso, mas, para Pacheco, aqueles cabelos desgrenhados e a cara bexigosa personificavam o Criador e o milagre do seu regresso à vida. O mastro arrastado pela corrente dá à costa e, com ele, Pacheco. Sentindo terra firme, Pacheco beija a rocha e enterra fundo as mãos na areia. De repente, ouve uma voz. Era uma voz sem som, que se lhe cravava no cérebro. Uma voz simultaneamente maternal e paternal, que lhe fazia lembrar recordações de infância. Maternal porque o aconchegava, o acarinhava e lhe dava segurança. Paternal porque se tornava rapidamente exigente, não lhe dava espaço para solilóquios e o encurralava. Esta era mesmo a voz de Deus. “Pacheco”, disse a Voz, “Eu amo todas as coisas, vivas ou inertes. A uma espécie dei consciência e responsabilidade. Nesta espécie não dei a todos as mesmas condições de vida. Tu nasceste privilegiado, com carinho, bens materiais e numa família de antigas tradições. Cresceste e fizeste-te homem. No meio onde vives, foste considerado e admirado por fazeres muitas concessões à liberdade de pensamento e, fartas vezes, sorri quando abocanhavas aquele teu correligionário mulherengo.” Mas”, continuou a voz, “algo explodiu dentro de ti e, de repente, dei contigo a vociferar, escumar e arrastar a barriga pela lama. Pacheco, Eu não te fiz réptil! Devolvi-te a vida. Sê Homem.” Pacheco chorou primeiro silenciosamente, depois convulsivamente, mas o rosto resplandecia. O choro era de alegria, e murmurou: “Deus é grande”. E, na costa, vinda não se sabe de onde, espraia-se a Ode à Alegria do compositor surdo.

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