sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Na Assembleia ou crinas ao vento.

Sentia os pés frios. “Que desconforto”, pensou. A noite anterior também não ajudara, o irmão, de quem gostava tanto, ao jantar não parara de falar do Sporting. Aquilo era Sporting para cá, Sporting para lá, enfim... Agora, entalada entre o Branco e o Branquinho, olhou em redor. O Primeiro-Ministro falava, o Portas saltava da cadeira e, no mesmo segundo, sorria conspicuamente, assumia um ar ofendido, uma pose de Estado ou estalava os dedos pedindo a palavra ao Presidente da Assembleia. Nunca aceitara aquele estalar de dedos para chamar a atenção do Presidente da Assembleia. Parecia-lhe algo displicente, para não dizer outra coisa. Louçã alongava a voz... os baanncoos, sempre os baaancos… o segredo baaancário. Olhou-o de soslaio. As filas atrás estavam bem recheadas de deputados, e pensou: “Como seria um governo dele? Neste mundo, nesta Europa. Enfim!... «Diga, diga», Sr. Deputado... E Jerónimo de Sousa brandia uma multidão de desempregados e assaltava padarias. «Não, não vá por aí», respondia o Primeiro-Ministro. Olhou para ele, não o suportava, … novo, acutilante, arrasador... de verbo fácil, sempre disponível para recordar a passagem dela por outros governos… como se atrevia! Eu tenho um currículo de elevada qualidade, não andei por aí nessas universidades de crá-cá-cá. Voltou a olhar de soslaio, a voz dele ribombava... «porque o PSD»… dizia… que raiva… concentrou-se nos seus pensamentos e, lentamente, a assembleia desvaneceu-se…

...os cavalos corriam desabridamente, músculos tensos rodavam violentamente debaixo da pele grossa, ventas abertas ao vento. Com uma mão nas rédeas da quadriga, a outra volteava o gládio sobre a cabeça. A longa túnica branca esvoaçava, os lábios apertados, e aquele olhar de predadora preparada para a exterminação. Era a quarta vez que passava por ele. A quadriga rasgava velozmente a areia do circo Máximo. Nas primeiras passagens, ele perdera a rede, o escudo e o tridente. Só lhe restava o dardo. Vê-o a retesar o braço e a arremessar o dardo com violência, inclina-se para a direita, o ferro rasga-lhe o ombro superficialmente. Um rasto de sangue tinge a túnica. Desfere o golpe fatal, a cabeça dele volteia no ar e ela grita...«. Zás!.. Zás!»...

… Uma voz à sua direita diz-lhe: “Zás?” Era o Branco. À sua esquerda, Branquinho repete incrédulo: “Zás?” e acentuou,«gritou Zás, Dra.?!” Toda a assembleia a encarava estupefacta. Do alto do Olimpo, o Presidente projectou o nariz e ficou de boca aberta a olhar para ela. Sentiu que uma enorme e estranha paz se apoderava de si. No tribunal do seu pensamento, todavia algo estranho ainda a perturbava, e, num súbito impulso, disse: “Sr. Presidente, peço a palavra.” “Com que finalidade, Sra. deputada?” “Defesa da honra.” “Da honra?”, retorquiu ele. “Sim da honra, confirmo.” “Da sua bancada?”, perguntou o Presidente. “Não, do Primeiro-Ministro!”, respondeu-lhe.
Nunca na assembleia se tinha passado tal coisa! Não estava previsto no regimento. Sem deixar que a interrompessem, disse: “Este primeiro-ministro pertenceu a um governo, como ministro, cujo segundo mandato se caracterizou pela indecisão,» e continuou, «Sendo um homem decidido, quando concorre para o actual cargo, os seus adversários logo viram que não era fácil abatê-lo politicamente, e que muito iria mudar. O que se seguiu a essa constatação é conhecido de todos, desde então tem sido insultado, injuriado e vilipendiado. Quando forma governo, decide enfrentar o longo braço das corporações: férias a mais, processos que se arrastam, avaliações que não se fazem, medicamentos vendidos a peso de ouro. Enfim, um volumoso bouquet de insuficiências, de abusos, de incompetências». «Era preciso abatê-lo, repito, mas,» continuou, «lentamente a economia cresceu, o deficit baixou, a confiança, embora titubeante, voltou e o povo começou a acreditar. Eis que, surgida das cloacas de Wall Street, se abate sobre o mundo a mais devoradora crise de que há memória desde os idos anos vinte.” “Tem de terminar”, disse o Presidente. “Termino já”, assegurou. “Sr. Presidente, eu quero afirmar que no lugar dele não teria feito melhor!» Pronto, pensou, está feito. E encheu os pulmões profundamente. Curioso, sentiu os pés confortavelmente quentes e a sua estreita consciência espantosamente tranquila.
Não houve tumulto na assembleia. Um silêncio gélido percorreu as bancadas. O Presidente pensou, meneando a cabeça… “Nunca ao longo da minha carreira assisti a uma coisa destas.” E, sentindo necessidade de pôr termo àquilo, disse. “Está encerrada a sessão. Os nossos trabalhos continuarão amanhã após o jogo da selecção.” Um pensamento percorreu todos deputados: …. Com o Brasil é chato, mas os outros estão no papo… e saíram com um sorriso de Estado nos lábios.


Bettencourt de Lima

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